quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Fetal development.


O imbecil que disse que na vida tudo passa, esqueceu-se de se lembrar que o tempo não é uma borracha, nem o passado um papel que pode ser amassado e lançado para a reciclagem. Na vida, nada passa, tudo fica. O passado é um óvulo e o feto é o presente. E o presente não pode ser abortado feito um feto indesejado.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010



Esquecendo os meus segredos, eu não passo de um esqueleto. De um corpo poluído pelo fumo das usinas, sem importância nem propósito de vida. Carregando os meus segredos, eu sou um esqueleto fundido noutros tantos esqueletos que carrego. Sou a porta aberta de um armário velho e apodrecido, cuja chave fora engolida pelas entranhas de um Deus amargurado. Eu sou um armário sem fundo de ossos humanos. A terra que encobre os esqueletos sempre que tentam fechar a porta do armário. Um calabouço de segredos sórdidos e profanos onde os meus pecados se acasalam com os dos outros.

Os meus olhos ainda lacrimejam lágrimas de pó quando eu olho para as fotografias do armário. Quando eu olho e vejo que em cada uma delas há, pelo menos, um morto. Mortos que sorriem, que me carregam ao colo e dormem. Vejo mortos em todo lado sempre que me debruço sobre os álbuns de fotografia. Recordo-me de ouvi-los dizer o quanto eu era bonita. Todos acenavam com a cabeça, dizendo que sim, enquanto aqueles que ainda hoje estão vivos, sorriam. Lembro-me de ser sentada no chão, ao lado das pernas dos mortos, e de eles olharem para mim com afeição. Nem todos eram parentes. Com o tempo, eu me apercebi que havia nascido para ter duas famílias: aquela que partilhava comigo o mesmo tipo sanguíneo, e aqueles que dividiam comigo as suas almas. Estes sim, morreram quase todos, deixando para trás aquela criança que não engatinhava como todas as outras crianças, pois optava por sentar-se com as pernas cruzadas e ir se arrastando pelo corredor.

Os corredores, quando somos crianças e ainda não chegamos ao interruptor, parecem-nos sempre desmedidamente grandes. Vemos os nossos pais afastarem-se momentaneamente dos nossos corpos, e conforme vão se afastando, vão se tornando cada vez menores aos nossos olhos. Quando somos crianças, somos pequenos passarinhos contemplando o voar dos mais velhos no horizonte. Do cimo da árvore, apoiamos a cabeça na borda do ninho e olhamos lá para baixo com medo das alturas. Assustamo-nos com os galhos, com as flores e o cair das folhas. Ansiamos pelo regresso daqueles que partiram logo pela manhã.

Todos nós temos segredos. Os contáveis e os que não se contam. Os que podem ser passados de boca em boca, e aqueles que são levados connosco até ao túmulo. Quando passo pelos cemitérios, a primeira coisa que me vem a cabeça é a curiosidade de saber quantos segredos estão ali enterrados. Olho para as criptas e imagino os meus próprios epitáfios. Pergunto-me o que dizem as vozes que não conseguimos ouvir. Silencio-me, porque eu sou um túmulo de segredos que ninguém consegue abrir. 

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Coisa de Doido



Sabe aquela sensação de que já dissemos algo, mas não conseguimos provar? Ou melhor, de que já escrevemos algo, mas não sabemos onde. Nos últimos dias, tenho tido a impressão de estar dizendo algo que eu já disse, mas que na verdade não cheguei a dizer. Pensei tanto naquilo que deveria ter escrito, que agora que vou escrever, tenho a sensação de estar me repetindo. Mas na verdade, eu não disse, mesmo querendo ter dito. E agora que estou pronta para dizer, não consigo, porque estou certa de que os meus pensamentos já foram materializados noutro lado qualquer. Sabe aquela sensação de já termos dito algo, mas não sabemos quando? Nós não sabemos quando porque simplesmente não dissemos aquilo que pensamos vezes e vezes sem conta, no entanto, ficamos crentes de que aquelas cogitações foram escritas em algum lugar. Não é possível, será que estou me repetindo? Sabe aquela sensação de que já dissemos algo, mas não conseguimos provar? Ou melhor, de que algo já foi escrito, mas não sabemos onde. Já tiveste aquela sensação de todas as palavras te parecerem iguais? Pensei em dizer algo, mas não o farei, porque tenho a certeza de que tudo já foi dito. No entanto, olho para os documentos do Word e para o arquivo do blog, e não vejo materializado de nenhuma forma aquilo que eu te ia dizer. Mas eu tenho a certeza de que está aqui. Está em algum lugar, escondido. E o quê é? Nem eu sei dizer.


(ps: eu acho que (já) estamos com 3 horas de diferença.)

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010



Sejamos inteiros enquanto os nossos olhos se reflectirem na água pura do rio que rega e aduba as plantas dos nossos pés. Sejamos uma árvore cujos frutos alimentarão as almas condenadas que se mataram com esperança de começarem a viver. Sejamos juntos, a transparência do infinito, um corpo inatingível, dois amores platónicos destinados a morrer.


Quando o mar abraçar o leito do rio, envelheceremos os dois na porta de casa, com os pensamentos submersos nas nossas próprias marés. Seremos dois cadáveres petrificados, sentados de mãos dadas numa cadeira de crochet. Deixaremos que as raízes das árvores se enrosquem em cada perna, e que os nossos corações adubem as terras inférteis que enlameavam os nossos pés. Submersos, seremos o nada que o nosso espírito se negava a ver, e encontraremos a felicidade de que me falavas, quando encostava a cabeça nos teus ombros enquanto víamos a chuva abrandar. A aurora está no brilho dos teus olhos. Seremos sempre jovens enquanto virmos o rio correr.

( eu queria muito que o blogger colaborasse com a m*rda da edição da postagem. Mas hoje - sei lá eu a razão - esse fdp do c*r*lho resolveu me f*der a p*ta da paciência!)

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Just Talking...



Faz frio lá fora. Eu estou aqui dentro sentindo o frio lá de fora enquanto olho pela janela. Tudo está fechado: portas, janelas e buracos. Do tecto já não gotejam pingos de chuva do verão passado, e o soalho de madeira está seco. Faz frio lá fora enquanto olho cá para dentro. Chove, venta e neva. E eu agarro-me às cobertas deixando apenas os olhos destapados. Ninguém me entende, porque eu não digo nada. Olho pela janela enquanto sinto os meus olhos descongelarem. O branco da neve é idêntico ao níveo do creme que espalho pelo corpo, e a minha pele assemelha-se as rachaduras de um lago congelado. O tempo pesa-me como pesam os corpos por cima do lago. E o sol torra-me o cerne das feridas até sangrarem. Ninguém entende aquilo que eu digo, porque eu calo-me. Sento-me diante da janela para ver o gelo transformar-se em água. Do outro lado da rua, os galhos das árvores secas caem. Não são as árvores que estão secas, são os galhos. E eles caem como caem aqueles que confiam nos braços da felicidade. Nunca confiei nos seus abraços, sempre os comparei aos ramos queimados e ressequidos pela ausência de tempestades. Durante toda a minha vida, os julguei desmedidamente fracos para os meus ventos contrários. E eu nunca me enganei nos meus julgamentos, caso contrário, hoje não teria à minha volta uma colecção de galhos quebrados.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Cálice


O despertar para a realidade é lento.
As janelas abrem-se vagarosamente
Enquanto os olhos permanecem fixos
Num ponto negro.
As retinas estão secas,
Coladas à orbita de um Planeta
Que não gira há muito tempo.
E as lágrimas escorrem, impassíveis
Ao deserto de folhas secas
Que trago dentro do meu peito.

De repente,
O sol luzente dos teus olhos
É o causador das minhas chamas e aguaceiros.
Eu desperto com o teu cheiro
Impregnado à minha carne mal amada,
E me despeço.
Abro as janelas, sinto o vento
Apunhalar-me toda a face
E me desfaço.
Lanço-me do penhasco de concreto
E te venero.
Rogo pragas à tua alma
Enquanto caio.

Despertar para realidade
É assassinar o meu amor a sangue frio.
É cortá-lo aos mil pedaços enquanto esvaio.
É enxotá-lo de um coração desamparado
Sem dar por isso.

Despertar para a verdade é fazer do ódio
A realeza.
É acordar pelas metades
Enquanto os meus opostos
Se afogam na tristeza.
É tecer-te sonetos de amarguras
Enquanto me esvaeço em dolências.

Adorar-te, é corromper-me de propósito
Com o feitiço de um cálice entornado.
É deitar-me neste leito de águas fundas
Enquanto velejas nos meus mares assombrados.
É deixar-me morrer, abandonado,
Enquanto te ensaboas nas espumas 
Do meu fado.


quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Estou aqui fora, com uma xícara de chá preto nas mãos, observando o movimento da rua, quando vejo o meu vizinho dirigir-se a mim. Vem sorrindo, vem com algo nas mãos, vem feliz. Convido-o a entrar para sentarmo-nos junto a mesa da cozinha. Ele segura-me pela cintura antes de chegarmos à sala. Arrepio-me com a frescura do seu nariz. Cheiras a rosas, diz-me ele. Numa das mãos trás um girassol mais amarelo do que o áureo do próprio sol. Cheiras a rosas do campo. Viro-me para ele e sorrio. Obrigada pela flor, vizinho. No momento em que lhe beijo o rosto, ele abre o primeiro botão do meu vestido. O quê estás a fazer, pergunto. Quero sentir o cheiro do teu corpo. O meu corpo cheira a rosas, respondo, impedindo que ele abra o segundo. Ele tem olhos azuis e bochechas vermelhas. Duas maçãs prontas a serem mordidas. O seu nariz traz pequenas sardas castanhas e os seus lábios trincam-se até fazerem feridas. Beijo-lhe os lábios com suavidade. As suas mãos dançam por cima do meu vestido, para cima e para baixo enquanto a sua língua baila harmoniosamente junto da minha, até cairmos para cima da poltrona que havia sido do meu pai, mas que hoje está demasiado funda para alguém se sentar.
Abre-me o segundo botão com os dentes. Estou por cima dele, tenho uma visão privilegiada dos seus olhos. Por instantes, sinto-me tentada a beber da sua água e a cair de cabeça no oceano das suas cores. No entanto, desvio-me. As minhas mãos descem até a sua cintura e despem-lhe a camisa sem que eu desse por isso. Quero, mas não quero. Não quero porque se quiser terei que me convencer que fui para a cama com o vizinho da frente. E nada será como antes. Ele inventará todos os pretextos do mundo para bater à minha porta, e eu inventarei todas as desculpas do mundo para abri-la. Mas quero, porque assim escuso de fechá-la a chave, e passo a deixá-la encostada para ele entrar.


Ele levanta-se, pergunta-me onde é o meu quarto e antes que eu lhe indique a direcção, já estamos na cama. Agora é ele quem está por cima. Impaciente, rasga-me o resto de vestido como um felino faminto. Arrasta a sua língua do meu pescoço até a barriga e para logo abaixo do umbigo. Arrepio-me. Penso comigo no que estaria a fazer se não estivesse prestes a abrir-lhe as pernas. Possivelmente, estaria dando alface aos últimos patos que haviam sido da avó Márcia. Ou então, comendo amendoins enquanto via a repetição de uma telenovela mexicana. Ou pior, fazendo as unhas dos pés enquanto praguejava com o homem do rádio. Talvez, não consegui pensar em mais nada, pois, quando dei por mim, já ele tinha a língua no meu ponto de prazer, e um misto de satisfação e insânia invadiu-me o corpo de rompante, fazendo-me arquear as costas violentamente. Sabia que ele olhava para mim. Tinha a certeza de que enquanto passeava a sua língua, os seus olhos encontravam-se fixos no meu rosto. Porém, só tornei a mirar-lhe a face quando acomodei-me por cima do seu corpo e o beijei até os nossos pulmões perderem o fôlego e os nossos lábios se encontrarem totalmente mergulhados no frescor das nossas salivas.
Passo a minha língua pelo seu torso e sinto o seu coração palpitar por baixo dela. Ele acaricia-me os cabelos e com os olhos fixos nos olhos dele, continuo a descer. Paro por baixo do umbigo e observo a sua expressão. Ele olha para mim sorrindo, e quando ele sorri, pequenos pés de galinha se formam em cada canto do olhar. És lindo, penso comigo, mas não és o tal. Continuo a descer e logo me deparo com a vivacidade do seu membro. Tudo o que ele pensava naquele momento, ia dar ali, na erectilidade do seu ponto de prazer. Levo-o de encontro ao céu da minha boca, e faço-o alcançar as estrelas. Ele suspira a alto e bom som e eu sorrio. Alterno a minha atenção entre o seu rosto e o movimento dos meus lábios. Ele grita: «Pára!» e eu não paro. Quero que supliques para que eu pare, quero que me puxes pelos cabelos até sentires a minha respiração no teu pescoço. E é exactamente isso que fazes, lês-me os pensamentos enquanto te engulo. Chupas-me a carne dos lábios com fúria enquanto te enfias dentro de mim. Sinto-te morno. Ao fim da tarde, abraço-me à exaustão do teu corpo e adormeço com a cabeça junta ao teu peito. Não aconteceu nada, nada disso é verdade. Antes de tu chegares, eu disse a minha mãe que não estaria em casa. E não estás, respondes-me enquanto vestes a camisa. Nós nunca estivemos aqui.

( Pronto, fiz um esforço. Mas não se surpreenda se daqui....hum...48 horas este post não estiver mais aqui. Ainda nem sequer postei e já estou arrependida......hahahaha)

sábado, 6 de fevereiro de 2010

O Homem do Lago

( Aveiro - c/áudio)


Há um parque mais ou menos próximo de tudo. Todos passam por lá. É bonito, é quieto, é verde. O chão é feito de terra escura e escorregadia. Todos escorregam, mas ninguém cai. As mãos agarram-se automaticamente nos ombros do desconhecido que por algum motivo nos acompanha, ou então, seguram-se nas verdes grades de ferro que circundam o extenso lago do parque. Os que vão sozinhos confiam apenas no equilíbrio do seu corpo. E há aqueles que não o fazem, por isso, ficam-se pelos bancos de concreto, junto aos patos. Cada um num banco. Mesmo aqueles que desistem acompanhados, desistem com cinco bancos de distância. O intervalo que os separa é mínimo aos olhos dos que caminham, ínfimo aos que correm e incrivelmente extenso àqueles que permanecem sentados.
Quem se senta fixa-se nas aves do lago, nos altos e largos troncos das árvores, no enlamear dos sapatos brancos e dos saltos agulha, ou no mover das águas verdes e musguentas, agitadas pelas asas. Quem caminha escorrega, mas não cai. Quem corre, não escorrega, não anda e não vê. E quem se senta, repara que no último banco logo à direita, encontra-se sentado o homem que ali estava ontem e na semana passada, e que por acaso também ali se encontrava há dois meses atrás, quedo, fixado num ponto qualquer. Só me dei conta da sua existência quando deixei de correr e passei a andar junto ao lago. Neste dia, ele deu-se conta de mim também. Ao fitá-lo pela primeira vez, pensei que ele gostava dos patos, mas quando me sentei, numa outra vez, dei-me conta que não eram eles o seu alvo. Os seus olhos seguiam as aves numa só direcção: viravam-se para a direita, mas não retornavam quando elas seguiam para o lado oposto.
Ele tinha o cabelo comprido, louro, grisalho, desfeito, e trazia sempre um saco plástico cheio de qualquer coisa que até hoje eu não sei o que é. O que me intriga no homem do lago, é que ele trás vestido um terno quase sempre impecável, o que contrasta com a sua barba grisalha e manchada. Seria um mendigo vestido de empresário, ou um empresário disfarçado de mendigo. As mãos que se estendem estão sujas de lama, ou enlameados encontram-se os meus olhos junto ao chão? Não importa. Depois do meio-dia, nossos olhos descaem. Não de sono, nem de cansaço, apenas descaem. Estejam sujos de lama ou não.


quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

O vazio é uma árvore de eucaliptos esguia e pesadamente imensa. Ninguém dá por ela até cair no nosso solo. Até sentirmos o chão que nos sustenta cortar-se ao meio e os galhos atingirem as outras árvores à nossa volta. É curiosa a sensação de já termos chegado ao fim da meta sem sequer sairmos do lugar. De corrermos às voltas quando o circuito é em linha recta. De deitarmo-nos de barriga para baixo porque o céu caiu-nos aos pés. De andarmos de pernas para o ar porque elas apenas caminham, enquanto os dedos apontam e os braços suportam o peso da sina. Ou de caminharmos de cabeça baixa porque o sol derreteu-nos o pescoço e os olhos não se voltam para cima. A verdade é que há quem (só) se dê conta do vazio, quando (já) não existem eucaliptos para cair.

Fiar-se na luz é desiludir-se quando a chama se apaga. Sempre achei curiosa a sensação de não se sentir nada, sendo que, o nada é sentir-se desabitado e desabitar-se é deixar fundir as lâmpadas. É odiar a claridade porque ela esconde o que o negrume evidencia, e enegrece o objecto que ofusca. Desabitar-se é sentir-se inconformado com as sombras e apagar as luzes. Como se as sombras se apagassem e voassem para longe. Como se as sombras se apagassem. Como se eu pudesse deixar de ser a distância entre mim e a minha própria sombra. Como se nós, de repente, nos tocássemos.

O perfume do eucalipto lembra-me algo que eu nunca retive na memória. Traz-me a lembrança o cheiro de terra batida com o corpo de duas crianças deitadas na lama. Deitadas de barriga para baixo, porque o céu enegreceu e hoje é terra. As crianças esfregam o corpo no chão, enquanto pensam estarem no céu. E comem terra, porque as nuvens são feitas de lama.

Existem dois tipos de sem-abrigo: aqueles que só conseguem adormecer encostados à parede - porque ela é o único apoio sólido em meio a tanta opacidade; E eu, que me sinto como se fosse uma lanterna fundida que não troca as pilhas, pois é curioso ver o escuro acender-se enquanto a luz se apaga, e é estranho ver-me apagar perante a luminosidade do dia...