sábado, 6 de fevereiro de 2010

O Homem do Lago

( Aveiro - c/áudio)


Há um parque mais ou menos próximo de tudo. Todos passam por lá. É bonito, é quieto, é verde. O chão é feito de terra escura e escorregadia. Todos escorregam, mas ninguém cai. As mãos agarram-se automaticamente nos ombros do desconhecido que por algum motivo nos acompanha, ou então, seguram-se nas verdes grades de ferro que circundam o extenso lago do parque. Os que vão sozinhos confiam apenas no equilíbrio do seu corpo. E há aqueles que não o fazem, por isso, ficam-se pelos bancos de concreto, junto aos patos. Cada um num banco. Mesmo aqueles que desistem acompanhados, desistem com cinco bancos de distância. O intervalo que os separa é mínimo aos olhos dos que caminham, ínfimo aos que correm e incrivelmente extenso àqueles que permanecem sentados.
Quem se senta fixa-se nas aves do lago, nos altos e largos troncos das árvores, no enlamear dos sapatos brancos e dos saltos agulha, ou no mover das águas verdes e musguentas, agitadas pelas asas. Quem caminha escorrega, mas não cai. Quem corre, não escorrega, não anda e não vê. E quem se senta, repara que no último banco logo à direita, encontra-se sentado o homem que ali estava ontem e na semana passada, e que por acaso também ali se encontrava há dois meses atrás, quedo, fixado num ponto qualquer. Só me dei conta da sua existência quando deixei de correr e passei a andar junto ao lago. Neste dia, ele deu-se conta de mim também. Ao fitá-lo pela primeira vez, pensei que ele gostava dos patos, mas quando me sentei, numa outra vez, dei-me conta que não eram eles o seu alvo. Os seus olhos seguiam as aves numa só direcção: viravam-se para a direita, mas não retornavam quando elas seguiam para o lado oposto.
Ele tinha o cabelo comprido, louro, grisalho, desfeito, e trazia sempre um saco plástico cheio de qualquer coisa que até hoje eu não sei o que é. O que me intriga no homem do lago, é que ele trás vestido um terno quase sempre impecável, o que contrasta com a sua barba grisalha e manchada. Seria um mendigo vestido de empresário, ou um empresário disfarçado de mendigo. As mãos que se estendem estão sujas de lama, ou enlameados encontram-se os meus olhos junto ao chão? Não importa. Depois do meio-dia, nossos olhos descaem. Não de sono, nem de cansaço, apenas descaem. Estejam sujos de lama ou não.


3 comentários:

Jean Valjean disse...

Senti uma brisa. Ou seria, o tal homem, um totem, à freudiana, no qual nos espelhamos? Para os que têm olhos de ver, motivo para reflexão; para os que apenas olham e não vêem, apenas um nada emocional ocupando um espaço físico.
Os olhos de lama... você me fez lembrar Rodrigues de Abreu, na Cantiga dos Barcos de Papel.
Lindo. E triste. E abissal. E... muito mais.
Abreijos do tio

Jean Valjean disse...

Foi você que fez este filme, Cosette? As sapatilhas pretas, a calça clara, a mão que ora aparece. Est-ce qu'il s'agit de toi?

Cosette disse...

Ouiiiiiiii c'est moi! Uma criatura com tal proximidade ao chão só podia ser eu! hahahaha