Não raras vezes ponho-me a pensar longamente acerca do assunto.
António Vieira, duma certa feita, disse temer a imortalidade, e jamais a morte.
Os católicos vêm a morte com fórmulas prontas: é assim, e pronto. Desde o concílio que instituiu o purgatório (Latrão? Não sei, depois eu vejo no Google), ou seja, há cerca de 15 séculos, nada mudou. Santo Tomás (sim, li muitos volumes da Suma Teológica), Santo Agostinho ('vide' Confissões, Solilóquios e outras), entremearam dúvidas e certezas. Suas certezas eram crivadas de dúvidas e emolduradas pelos dogmas.
Conheço a obra inteira de Allan Kardec. E quando digo 'inteira' é inteira mesmo: não só o Livro dos Espíritos, dos Médiuns, o Evangelho, a Gênese, o Céu e o Inferno, as Viagens, O que é o Espiritismo. Não. Todos os volumes da Revista Espírita também: uns 11 ou 12 anos de publicações.
Depois vieram os seguidores dele: Léon Denis, Ernesto Bozzano, Gabriel Dellane, etc. No caminho não faltaram os historiadores europeus do espiritismo, entre eles o célebre Arthur Conan Doyle. Depois desemboquei no Brasil. Sim, li a maioria dos livros psicografados por Chico Xavier. Comecei por toda a série Nosso Lar (são uns 15 livros, já nem lembro), li todos os ditados por Emmanuel: romances, filosóficos, etc. Yvonne do A. Pereira, Zylda Gama e outros, como a Zíbia Gasparetto, e até os mais modernos, como Patrícia, que foram 'modernizando' a visão que André Luiz trouxe para estas plagas Tupiniquins.
Coração do Mundo, Pátria do Evangelho? Hm...
Acompanhei a briga da família de Humberto de Campos Veras (segundo os espíritas convictos, o Irmão X) contra Chico e seguidores. Bezerra de Menezes, vivo e desencarnado. Boa parte (considerável mesmo) da obra psicografada por Divaldo Pereira Franco, a cujas palestras andei assistindo, bem como participando de seminários longos, na década de (19)90.
Sim, escrevi dois livros, afora artigos em jornais especializados. Alguns foram traduzidos para um ou outro idioma.
E?
Bom, chegou um dia em que notei que meus conhecimentos eram todos fundados naquilo que eu chamava 'fé'. Quando fui comparar as informações de romances históricos de Emmanuel com as de grandes historiadores da Bíblia, desde Sholem Asch, passando por vários dos mais célebres e sérios pesquisadores franceses e italianos, percorrendo os romancistas percucientes, como Sienkiewski, encontrei um 'gap' insuperável entre o que a história trazia e o que ela não trazia, nem podia trazer.
Àquela época dava aulas (que pretensão...) de espiritismo, e me vi a 'voltar' pela estrada de Damasco que jamais percorrera. Eu não fui à cata de Ananias, não. Eu me vi fugindo dele. A luz não me deslumbrou, mas a escuridão. E quando alguém me perguntou 'quo vadis?', eu já nem sabia responder, nem muito menos quis voltar para as plagas donde viera (e às quais fugia).
...
Os parapsicólogos não me foram estranhos. Li muitos. Desde o popular René Sudre até as obras menos sérias, do Padre Quevedo (algumas, 'data venia', são de a gente dar risada, pela fragilidade das experiências relatadas...). Estudos acerca do ectoplasma (que hoje está mais que comprovado: é uma emanação do citoplasma da célula e já foi amplamente analisado em laboratório).
...
Larguei tudo, fiquei com os filósofos, os poetas e com a essência, a seiva das religiões.
Não me interessam mais os ritos, as formas de 'adorar'. Não tenho religião nenhuma, mas me sinto profundamente religioso. Toda religião séria traz em seu bojo o amar a deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Contudo, esse deus é incognoscível, imperscrutável... então o que me resta? Entrei num período agnóstico: há deus? provavelmente há, mas não pode ser que 'pare' para interferir em nossa vida. Entretanto, se ele existe, criou leis. E tais leis, queiramos ou não, são cumpridas. Não gosto muito de tratá-lo por 'ele', pois pronomes não deveriam indicar quem a rigor não tem nome (nós inventamos milhares deles, e eu pergunto: para quê?).
...
Digamos que a religião me 'humanizou'. Precisei ler mais de 2000 livros para ganhar uma gotinha de entendimento. O real conhecimento não é o que se recite de cabeça, mas o que se instale no coração. Hoje nem gosto mais de citar trechos e mais trechos de filósofos e pensadores, como antigamente fazia. Tudo é vão. O conhecimento que se adquire, quando se o adquire realmente, cala-nos a alma e a boca. Quem conviva comigo hoje sabe que não discuto religião, mas procuro viver, anonimamente, os preceitos básicos do amor. Não gosto da palavra caridade, pois na mente do religioso é ajudar, e muitas vezes de cima para baixo: eu estendo a mão, eu que estou em pé, para você, que está sentado ou deitado. Não gosto disso. Os grandes religiosos, sejam de que religião forem, ou mesmo ateus, são realmente (e não forjadamente) humildes. René Sudre, no 'Petit Traité', diz que a verdadeira humildade é o ateísmo na primeira pessoa. Esses grandes religiosos jamais ajudaram senão na horizontal. Muitas vezes nem sabiam que estavam ajudando, embora estivessem.
...
Huberto Rohden, de uma certa feita, disse que se houvesse mesmo um céu, lá haveria mais ateus do que religiosos. Concordo. Ele falou dos religiosos rotulados. É que o ateu - normalmente um nome preconceituoso que se dá para os que dizem não acreditar em deus algum - de hoje é membro de uma nova e estranha religião que se defende com unhas e dentes. Mas o ateu do passado não era 'fashion', era mais desinteressado. E muitos ajudavam a sociedade apenas e tão-somente pelo prazer de ajudar, para ver o mundo ao seu redor mais equilibrado!
...
Ah, qualquer dia falo mais sobre isso. É que hoje, que me sinto, aos poucos, a retirar-me da vida material (tenho a sensação de que não vou viver muito, não), volto a Vieira: seria muito fácil se houvesse a morte - fosse ela panteísta ou niilista, a volta do leão ao nada ou à 'leonitas'. O problema é se para lá do chisteado 'nec plus ultra' houver alguma coisa. O lado de lá, em Kardec, é bem diferente do lado de lá de André Luiz. A psicografia de Chico Xavier e Divaldo Franco muitas vezes não bate com conceitos do Livro dos Espíritos, nem da Gênese. O espiritismo, no Brasil, ganhou contornos, pasmemos novamente, muito católicos. Hoje há, aqui, os espiritólicos e os católicos reencarnacionistas. No tempo de Kardec ele aceitou que se denominassem espíritas um grupo de ingleses que não acreditava em reencarnação. Cá entre nós: ser religioso não é acreditar nisso ou naquilo. Ser religioso não é acreditar, mas viver algo sincero, gostoso...
...
Talvez estivesse certo Nietzsche: o único cristão verdadeiro foi o cristo, e o protestantismo é a hemiplegia do cristianismo.
Por mais que se digam assim, não existe religião ocidental alguma que seja realmente monoteísta. Ou os santos são deuses secundários, ou os pastores mesmo, ou então os médiuns, os espíritos ditos puros, enfim, quem seja. E sinceramente, o que importam essas classificações?
...
Outro dia vi um sujeito, na rua, tirando o seu casaco para vestir um mendigo que sentia frio. Talvez um dia não haja mais ninguém, no mundo, sentindo frio.
...
Qualquer hora digo alguma coisa sobre as religiões orientais. Falei, falei, e não disse nada. Isso tem se tornado lugar comum em minha vida.