quinta-feira, 17 de junho de 2010

Resenha para Beowulf - Jean Valjean (republicação)



Há muito tempo, era bem jovem ainda, li – traduzido... ou melhor, tresli – o poema épico Beowulf que, segundo as fontes, teria sido escrito entre os anos 700 e 1000 d.C. Esqueci-me quase inteiramente da história ali narrada. Num fim de semana do último quartel do ano passado, contudo, de ânimo taciturno, assisti ao filme de Robert Zemeckis, "A Lenda de Beowulf", e o ano lá sugerido é o de 547 da Era Cristã. Como não é a parte histórica que pretendo comentar, mas apenas fazer uma digressão sobre alguns temas centrais e personagens, deixo os evos para os historiadores e estudiosos. Beowulf, o "herói" – a idéia maniqueísta é lançada desde o início da obra - vai ao Reino de Hrothgar para matar um monstro: Grendel. Mal sabia que ia à busca (e ao infeliz e necessário encontro) de si mesmo, e que Grendel não era verdadeiramente um demônio, senão um totem a ser sacrificado. Este meu brevíssimo lanço de olhos, então, dá-se sobre o filme, e não sobre o texto escrito.


Em primeiro lugar, é preciso frisar que há algo patente no protagonista da obra: Beowulf quer o aplauso do público. É jovem, é forte, é audacioso. Mas que aplauso, realmente, buscaria? E a que preço? Não vou pesquisar agora, para que me não fujam à memória (a apossínclise é propositada) dados que desejo consignar aqui; porém, ou é Pascal, ou é Voltaire, a dizer que somos tão ambiciosos, que desejaríamos receber a ovação do mundo inteiro: quereríamos que todos nos conhecessem e adorassem; entretanto, ao mesmo tempo, somos tão vãos, tão vazios, que o reconhecimento de um pequeno grupo, que nos cerca, envaidece-nos e nos refesta a vaidade (a ambição pelo - ou por um suposto - reconhecimento alheio). Foi assim que vi Beowulf: seu calcanhar-de-aquiles é sua vaidade; e outro "pecado capital" que o acomete: a luxúria. Como pecado capital é "cabeça-de-chave" (caput), cada qual traz consigo pecados menores, desde os veniais (os que admitem vênia) até os quase famélicos pecadilhos (isto é Santo Tomás). Entretanto, ele é herói. É mito. Sua coragem é muito acima da média, pois até seus maiores medos pode enfrentar.

Grendel, visto pelos olhares simplórios como um sanguinário ogro, é mero pecado venial. Ele é fruto, não árvore. Ele é criatura, não criador. Reage, não age. Ataca salões de festas, pois a algaravia, a alegria, as comemorações, machucam-no. Ele é um pária social. É preciso matar a má-inteligência, o "pecado capital", mas essa parece ser imortal. Lúcifer é o "porta luz", o candeeiro, o símbolo da inteligência. E assim a mãe do disforme e agressivo (senão agredido) ser.


A vaidade sem discernimento e a inteligência sem moral, quando se cruzam, geram os monstros da culpa, os dragões da consciência. Desde o início Beowulf deixa-se trair, para o bom observador. Parênteses para lembrar a todos os que leiam este texto: o leitor atento não se fixa apenas no que é dito, mas também no que ficou abscôndito nos ângulos de um triângulo formado pelas retas do que se pode e não se deve dizer; do que se deve e não se quer dizer; do que se quer, mas não se pode, nem se deve dizer (aqui talvez a hipotenusa, cujo quadrado é igual à soma dos quadrados dos catetos. Ela, a linha maior. O querer é enorme, e limitá-lo é, às vezes, hediondo, embora possa ser obrigação). As entrelinhas, as intenções, a reserva mental, tudo isso compõe as obras escritas, interpretadas ou, de qualquer forma, expostas ao público. Parênteses, dentro dos parênteses, para falar em Jung. A obra: Mysterium Coniunctionis. Ed. Vozes, obras completas, vol. XIV/2, Petrópolis, 1990. A comissão de tradução deixo para vocês, que forem ler... Na página 222, item 333, diz o Autor:


"... os símbolos são tendências cuja meta é ainda desconhecida. Pode-se decerto pressupor que na história do espírito valham as mesmas regras fundamentais como na psicologia do indivíduo. Na psicoterapia ocorre freqüentemente que certas tendências inconscientes, ainda muito antes de se tornarem conscientes, deixam perceber sua presença por meio de símbolos que surgem o mais das vezes nos sonhos, mas também nas fantasias durante a vigília e nas ações simbólicas. Muitas vezes se tem a impressão como se o inconsciente tentasse por meio de alusões de todo o tipo e de analogias penetrar na consciência, ou como se ele empreendesse exercícios lúdicos mais ou menos preliminares, a fim de conseguir ganhar a consciência para a sua causa..."

Fecho todos os parênteses com o dizer que a expressão facial de Beowulf, além de envelhecer, vai-se tornando, a pouco e pouco, cansada, desgostosa. Ele de há muito não crê em si. Foi corajoso até um determinado momento; de lá em diante, um covarde. Era necessário matar um totem e vencer alguns tabus. Herói que é, renascerá, ao depois, como todo herói renasce, ou não morre - exemplos são El Cid, D. Sebastião, Simão, Solimão, Alexandre, o próprio Cristo; contudo, sem que possa debelar todo o mal causado.Vivemos espremidos entre tótemes e tabus. Enrolamo-nos diariamente nos áureos fios de Hephaistos. O vinho de nosso ego revela-nos as verdades inconfessáveis (in vino veritas é reles início para a exegese da magnânima obra "A Pane", de Friedrich Dürrenmatt – nesta, magistralmente, à medida que se penetram os meandros da alma, os vinhos se tornam mais velhos e mais nobres... perscrutação e recompensa. A sabedoria dos anciães atinge a consciência culpada de Alfredo Traps, mais jovem e menos experiente). A história dos Homens (gênero) se repete: nosso ébano é iluminado; nosso mármore, nossa parte obscura (eu não quis dizer o contrário, não se espantem).

Como devaneei dia desses, algures, o dizer é, muitas vezes, o obverse do pensar. O que escondemos nos oprime. O que revelamos pode matar-nos, mas nos liberta. O apocalipse do corpo quiçá venha a significar a Gênese da alma. Não há epifania antes da travessia de todo um Mar Vermelho, celebrações, sofrimentos entre canículas desérticas, pestes, pragas, chagas, previsões, decapitações e... não há.

A mitologia nórdica e o cristianismo fundem-se e se confundem na obra. O nome de Odin é e(in)vocado reiteradamente; o Cristo, embora rejeitado, pode ser refúgio. Cruzes que caem, fogos que as consomem. Odin sacrifica-se pelo saber (ou pelo poder?). Fausto entrega sua alma ao diabo – pelo saber? pelo poder? Prospero, de Shakespeare, depois de traído e exilado numa ilha com sua filha Miranda, em "The Tempest", descobre, nos alfarrábios de uma bruxa, conhecimentos que lhe dão poder. Saber é poder. Esconder(-nos) faz-nos a fragilidade. A morte é o fim de todos. E até o próprio Jesus, se considerado, como Nietzsche o faz, criminoso político, e como tal julgado – e condenado –, morre, e a ele, o Cristo, sobrevive o mal (fica a promessa de um "consolador", que ninguém pode garantir, senão religiosamente, venha). A "serpente" envolve nosso protagonista Beowulf, e ele cede e acede. "Caim, que fizeste?", parecia-lhe ouvir, no eco da consciência, o tempo todo. Hrothgar é Rei, mas também traz a consciência intranqüila, o que o torna escravo. Foge de um monstro – que ele mesmo criou e não sabe como exterminar. O "agênere", entretanto, persegue-o flagelando os seus súditos, e não a ele, o Rei. Ver a morte dos que amamos pode ser mais cruel que o impingir-nos a própria morte. O Rei não é somente altruísta, mas egoísta, outrossim. Não é possível cultuar o alter sem cultuar o ego; e quem cultua, pelo fato de o fazer, fá-lo (verbo mais ênclise, pois do herói já se falou) atávica e, consectário, no mais das vezes, inconscientemente.

Parecia-me ouvir a condenação de Jeová, na tábua dos mandamentos: os filhos pagarão pelos pecados de seus pais, até a terceira ou quarta geração, pois sou deus vingativo... Hrothgar é pai de um monstrengo. De um pobre Frankenstein. De um Caliban (que culpa têm esses seres semi-conscientes?). Acima de tais criaturas há uma inteligência que as concebeu e criou.

É preciso voltar para dizer algo: Unferth, cortesão no Reino, é um símbolo quase protruso da (in)consciência na obra. Em princípio, perseguia Beowulf, querendo expor ao mundo as fraquezas do protagonista. É que o herói teria perdido uma competição de nado para um outro homem, também valente. Naturalmente, não se agride a pessoa que não nos agrida. Inveja? Provavelmente, sim. Ele queria o reconhecimento e os clamores de que gozava Beowulf; todavia, o protagonista trazia culpas consigo. Fragilidades. É humano. Mentiu. Perdeu uma competição. Tê-la-ia perdido para matar monstros, ou esses monstros seriam factóides, cortinas de fumaça feitas para desviar a atenção que se gerou sobre um fracasso seu? Ao fim, ele se entrega a uma sereia (a própria mãe de Grendel), a que mais tarde entregar-se-ia novamente, omitindo outra vez o fato. Sucumbia à mentira derivada da vaidade. Sucumbia à mentira derivada da luxúria. Os pecados veniais vêm para justificação dos capitais.

Voltemos a Unferth.

Os que nos criticam podem ajudar-nos. Podem ajudar-nos mesmo se colimem testar até onde podemos chegar (com a verdade ou com a mentira). Quem nos inveja deveria ser bem-vindo ao nosso lado, pois que há-de apontar defeitos que não vemos, embora tenhamos. Provavelmente, Unferth sabia que Grendel não era a origem do mal; talvez soubesse que era filho da união espúria entre o Rei Dinamarquês e a "bruxa", "feiticeira", "inteligência sem moral", personificada ou des-personificada, mas "personificável".Ele dá uma espada a Beowulf, e talvez soubesse que não seria uma espada instrumento hábil a matar um ser-não-ser, imaterial, "actus (im)purus", "natura naturans". Ou talvez não soubesse; entretanto, Beowulf mentia.

Se o dito "ogro sanguinário" era a representação do medo, este o herói enfrentou sem roupas. Arrostou-o. À medida que o enfrentava, o medo diminuía, degringolava, foi mutilado, decepado mesmo e, finalmente, morreu. Mas o medo é menor que a origem do medo. O medo é bem menor que a decifração de si mesmo (a impossível decifração do enigma, do verdadeiro enigma da esfinge).

O medo é bem menor que o labirinto sem Teseu, e só com Minotauro; sem Ariadne, só com armadilhas e jovens sacrificados(as), e sangue: o impossível nosce te ipsum. O Rei Hrothgar errara antes de Beowulf. Cedera à tentação. Experiente, notou, quando Beowulf voltou das terras da mãe de Grendel, que o admirável guerreiro caíra – como ele mesmo, sumo soberano – em tentação. Mentir para quem conhece bem o objeto sobre que se mente é acusar-se. O Rei, desolado, entrega a Beowulf sua coroa e põe fim, estoicamente, à própria vida.

Os brados psitacistas que faziam ecoar o nome de Beowulf, os festejos que comemoravam sua "vitória", tudo isso fora-lhe inócuo, se não o veneno que, em doses mitridáticas, o matava. Queria os aplausos legítimos, pelas vitórias verdadeiras, e não o ovacionar surdo e incontido sobre a vitória que o derrotara - sua vitória-de-pirro. A mulher-lúcifer, sedutora, superior a ele, fê-lo dar-lhe um filho. Mais um rebento do mal. Um dragão, poderosíssimo, que cuspia labaredas, que submergia n'água, e que ele, Beowulf, tem obrigatoriamente de combater.Responsabilidade aquiliana: causou, por sua fraqueza (culpa in vigilando e in eligendo) mal a seu povo; deveria debelá-lo. E não à origem do mal, esta imorredoura. Contou com a ajuda, sempre, do amigo Wiglaf, que acabou por salvar a vida de sua esposa e de sua (quiçá) amante.

Já revelei tanta coisa, que vou deixar, para quem for vê-lo, a conclusão deste filme. Palmas para Beowulf, que é um ser-humano, e não uma divindade. Por isso, dedico-lhe as palavras abaixo, de Shakespeare, pela voz de Prospero, em "The Tempest":


Now my charms are all o'erthrown,
And what strength I have's mine own,
Which is most faint: now, 'tis true,
I must be here confined by you,
Or sent to Naples.
Let me not,
Since I have my dukedom got
And pardon'd the deceiver, dwell
In this bare island by your spell;
But release me from my bands
With the help of your good hands:
Gentle breath of yours my sails
Must fill, or else my project fails,
Which was to please.
Now I want
Spirits to enforce, art to enchant,
And my ending is despair,
Unless I be relieved by prayer,
Which pierces so that it assaults
Mercy itself and frees all faults.
As you from crimes would pardon'd be,
Let your indulgence set me free.

12 comentários:

Jean Valjean disse...

Cô, um parente nosso, ou seja, um parente em cô-mum, me disse que você detestou este texto, quando eu o publiquei num velho blog hahahahahahahaha!

Jean Valjean disse...

Cô, que m*, eu não sou perfeito. Dá pra me perdoar??? Chata...

Cris Medeiros disse...

Olha eu não detestei o texto, eu admiro sua capacidade de escrever com um vocabulário rico... O que denota que você lê muito e é inteligente... Mas confesso que não alcancei muitas passagens do texto, ficou além da minha capacidade simplória... ehehehe

Eu admiro pessoas como você não acho chatas!

Aproveito a oportunidade para agradecer seus comentários sempre muito fofos, inteligentes e sinceros no meu blog. Eu adoro quando você comenta por lá...

Beijocas

Jean Valjean disse...

Dama, que bom que alguém me entende e não me acha chato! Ora, vou ao seu blog com o maior prazer do mundo, pois lá há vida inteligente o tempo todo!
Abreijos!

Cosette disse...

Para quem não tem conhecimento algum, qualquer vocabulário é rico.
Não entendi essa do 'chato', mas tudo bem. Vocês é que sabem.
Não detestei, simplesmente disse que não tinha entendido nada. Ainda hoje continuo entendendo pouco, pois o meu conhecimento sobre o assunto continua sendo mínimo. Arranjei ontem o filme, mas ainda não o vi. Depois de o assistir, se tiver algo para complementar, comento.

afonso rocha disse...

Já valeu para alguma coisa a reposição!!!!
A Cô arranjou o filme e vai vê-lo!!!!! E acredito, que depois cô-mentará positivamente, pois o sacana do texto...é comprido...mas tá bom!!!! Come-se...e recomenda-se!!!
Jean, tô contigo!
Adorei o poder da bajuladora Dama de Cinzas. Uma no cravo...e outra na ferradora!!!!eheheh
Abração, amigo!

Cô, se não entender...rebobine...
Beijo pa ti!

afonso rocha disse...

EUREKA!!!!!!
FOGUETES AO AR...
É SÓ PARA AVISAR QUE O URUBU (vautour) TEM DOIS POSTS NOVOS!!!!!!
FINALMENTE.....

Cosette disse...

Vi o filme. A única coisa que tenho a dizer, é que torci até ao último minuto para que o Grendel matasse todo mundo. E adorei a cena em que ele mastigou a cabeça de um carinha.
Quando Grendel morreu, fiquei de luto até ao final do filme.
Ele era uma criança, tadinho.

Jean Valjean disse...

Ué, fui até o blog do Vautour e o cara sumiu!

Cosette disse...

Pois é, e o maldito nem sequer se despediu. Ingrato.

Jean Valjean disse...

Eu acho que o Vautour é homossexual e não consegue assumir. Isso o transforma num cara meio esquisito. Você não acha? É que quando a gente assume fica mais fácil, sem recalques, sabe?
Sei lá. Só acho.

Cosette disse...

Ah, não...eu acho que ele talvez tenha sido domesticado, sabe? Ouvi dizer que ele ia deixar a barba crescer ' pra roçar melhor' (?) Vai-se entender.