quarta-feira, 24 de março de 2010



Cresci rodeada por adultos. Na minha rua, quase não havia crianças e os meus amigos de escola nunca duravam para sempre. Cresci rodeada por adultos e por mentes adultas, por gestos perversos, pensamentos sórdidos e desejos implícitos. Cresci ouvindo conversas sobre a política, capítulos das novelas e devaneios amorosos. Durante muitos anos, eu fui a menina mais nova da família. Sete anos após o meu nascimento, nasceu um menino e seis anos depois, um outro rapaz. Eu passei boa parte da minha infância, socada entre as rodas de amigos do meu pai. Com o tempo, comecei a achar-lhes uma certa piada. Eram frágeis, e as suas fragilidades eram disfarçadas com trinta canecas de cerveja fresquinha e sete tijelas de queijo temperado com orégãos.
O homem é inseguro. Detrás da capa protectora e dos comportamentos tipicamente masculinos, existe alguém em constante busca pelo seu equilíbrio. As rodas de amigos e conversas de bar, nada mais são do que um meio de escape à solidão que os assola quando não têm ninguém por perto. O homem bebe tentando se esquecer. Cada gole não passa de uma tentativa inútil de anestesiar as dores do coração. O homem é inseguro, é o réu, o juíz e o juri de si mesmo. É alguém que, erroneamente, busca no sexo oposto a mesma liberdade que encontra dentro de uma garrafa de cerveja. Procura na mulher a absolvição dos seus pecados, e sacia na sua maciez a carência agravada pela solidão das mesas de bar.
A mulher é o sexo forte. É um porto seguro que requer do homem carinho e dedicação permanente. Quando isso não acontece, deteriora-se aos poucos, e desaparece. A mulher é a personificação de um diário cor-de-rosa que deseja ser lido pelos olhos do seu príncipe, e ser tocado pelas mãos que o desejem. Enquanto os homens constróem seus castelos, as mulheres sonham com os seus príncipes. Eles só se dão conta da falta que elas fazem, quando as luzes se apagam e não há ninguém debaixo das cobertas. Eles se esquecem que sem uma princesa, jamais se tornarão reis, e que sem o amor e dedicação de uma mulher, o coração adoece e se transforma numa lata velha, oca e preenchida de inutilidade.
Aqueles que se negam a aceitar a deterioração de uma fortaleza, são os mesmos que atiram pedras às janelas daqueles que vivem numa casa simples. São aqueles que constróem pontes com cacos de vidro; caminham descalços sobre eles, e não entendem a razão de amanhecerem com cortes nos dedos. São os primeiros a se esconderem por baixo dos rochedos, com medo das chuvas de granizo. Lá fora, o sol ilumina o corpo dos homens e das mulheres. Não tem preferência. Mas são eles que caminham de cabeça curvada. São eles que cruzam os braços e se dizem filósofos ao fitarem o nada enquanto as mulheres engolem o sol num só trago. Os seus olhos se transformam na curva de um ponto de interrogação e as reticências no pingar das suas lágrimas. Os homens são frágeis, e choram. As mulheres são fortes, e choram. Elas buscam no seu pranto, a força que não encontram no sorriso dos maridos.
O vento despenteia-me. As pálpebras pesam por causa do sono que não dormi. Caminho na relva, ignorando as placas que me proíbem. Escuto o comboio passar enquanto caminho na relva molhada. Não sei se regressa ou se está de partida, tal como desconheço o findar do meu dia. Sacio a minha fome com um pedaço de pão seco e mato a minha sede na torneira de um banheiro público. Ninguém pergunta por mim, ninguém me questiona. No céu, aglomeram-se nuvens, para depois desfazerem-se com o vento. Do meu queixo escorre água com calcário, e todos olham como se não tivessem visto nada. Procuro detrás das nuvens o avião espelhado nos meus olhos. Ouço o som mas não o vejo. Limpo o queixo na manga do casaco e me encolho. As horas não passam, o telefone não toca, ninguém quer saber por onde ando. Se passarem, se tocar e se perguntarem por mim, responderei que hoje não me encontro. Que tenho por hábito desaparecer e que não adianta saírem a minha procura. E se não me entenderem, escreverei num guardanapo amarrotado que os meus desaparecimentos são propositados e não têm data de regresso. 

2 comentários:

Jean Valjean disse...

Que viagem para dentro! Imergi com você e emergi meio taquicárdico. Confesso que a parte do castelo, da princesa, do rei, etc, esta já não me apetece, em minha idade. Vá lá, porém, pois tem um quê de verdade. É que já estou mais para guardião dos fossos.
As imagens são lindas, como soem ser.
Abreijos

Cris Medeiros disse...

Adorei o texto!

Beijocas